PODE UM BATISTA SER
REFORMADO?
Sou pastor batista e sou reformado!
Alguns batistas podem ficar desconfortáveis com o termo
reformado porque por falta de entendimento rejeitam o Calvinismo e fecham a
porta de uma conversa rica e esclarecedora quanto a doutrina da graça, achando
que não há relação entre a teologia reformada e os batistas. Um batista pode
ser reformado? Claro que sim, pelo menos em uma perspectiva soteriológica.
Vamos entender o termo:
1. O QUE É SER
REFORMADO?
Olhando teológica e historicamente para a pergunta o que é
ser reformado, o leitor poderia responder prontamente que é crer na teologia
reformada, entretanto uma outra questão emerge: O que é teologia reformada?
Dr. Sproul afirma que a teologia reformada é
fundamentalmente centrada em Deus, baseada somente nas Escrituras, comprometida
com o princípio da justificação somente pela fé, devota a Jesus Cristo e
estruturada por três alianças.[1] Dr. Laurence Vance adiciona que a teologia
reformada possui duas doutrinas centrais: a teologia do pacto e o
calvinismo.[2] O já aposentado professor Herman Hanko do Seminário Protestante
Reformado nos EUA, restringe ainda mais o termo dizendo que teologia reformada
é crer nos cânones de Dort (depravação total, eleição incondicional, expiação
limitada, graça irresistível e perseverança dos santos).[3]
É comum que se associe o calvinismo ao presbiterianismo,
porém não podemos limitá-lo somente a um grupo denominacional, mas a todo um
movimento: a Reforma Protestante. É fato que alguns gostam de subdividir a
Reforma Protestante em "reformas" (Evangélica ou comumente conhecida
como luterana, a Reformada, a Anglicana e a Anabatista), mas vamos nesse artigo
considerar somente o conceito maior da Reforma Protestante, o rompimento
eclesiástico e doutrinário com o Romanismo. R. B. Kuiper sustenta, então, que o
calvinismo é uma evolução completa do protestantismo,[4] o que incluiria não
somente os presbiterianos mas todos os outros grupos protestantes, e
consequentemente, os Batistas.
Infelizmente o termo “reformado” foi associado com somente
um grupo protestante, assim como o termo “pentecostal” foi vinculado com as
igrejas que apresentam características específicas como o Arminianismo, a
ênfase na prática dos dons espirituais, o batismo no Espírito como uma segunda
experiência do cristão evidenciada pelo falar em outras e línguas, e a busca
por milagres. No entanto, biblica e epistemologicamente, todas as igrejas são
pentecostais, pois de acordo com a visão batista dispensacionalista, a igreja
teve seu início no Pentecostes, tornando-nos todos pentecostais em um sentido
mais amplo do termo, porém hoje pentecostais, mais restritamente, são as
igrejas que possuem essas características particulares do grupo que detêm esse
nome.
Da mesma forma todas as igrejas protestantes, também em um
sentido mais amplo, são reformadas, pois romperam com o Catolicismo Romano,
defendendo e aderindo aos princípios da Reforma: a autoridade suprema das
escrituras e principalmente, a justificação somente pela graça, somente por
meio da fé e somente em Cristo Jesus, tão bem expressa e complementada nos
cinco solas da Reforma (Sola Scriptura, sola gratia, sola fide, solus Christus
e Soli Deo gloria).
Com esse esclarecimento fica claro que o Batista não só pode
ser reformado, mas é reformado. Mas entendendo que historicamente o termo
“reformado” é uma referência a teologia reformada como um todo, e essa teologia
é expressa na confissão de fé de Westminster e nos cânones de Dort, podemos
então afirmar que o batista pode ser reformado?
Defendemos que a teologia reformada é muito mais do que um
sistema teológico fundamentado nos cinco pontos essenciais para o correto
entendimento da Soberania de Deus e da aplicação da salvação, representada na
Confissão de Fé de Westminster e nos cânones de Dort, denominado “calvinismo”
pelo polemista luterano Joaquim Westphal (1510-1574), quando se referia ao
Catecismo de Heidelberg (1563) e as doutrinas aparentemente estranhas à fé
luterana. [5] A teologia reformada vai muito além disso.
É correto afirmar que o cristão reformado defende a teologia
reformada e crê nos cinco pontos de Dort, mas quando falamos de alguém ser
reformado estamos nos referindo a uma cosmovisão. J.I. Packer declara que a
teologia reformada “é uma maneira teocêntrica de pensar acerca da vida, sob a
direção e controle da própria Palavra de Deus”.[6] Ser reformado não é apenas
defender alguns pontos da teologia sistemática, mas sim, ter um entendimento da
vida a partir das Escrituras Sagradas, que naturalmente irá determinar nosso
comportamento, nossas atitudes e crenças nas diversas áreas de nossa vida.
Ser
reformado é ter essa cosmovisão e ela certamente não é dualista, não divide a
cultura criando uma dicotomia fundamentada distintivamente entre o santo e o
profano, o sagrado e o secular, mas vive os princípios do reino de Deus e seus
mandamentos bíblicos em cada área da vida, [7] formando assim, uma cultura
cristã, que expressará sua linguagem, sua arte, sua economia, ciência,
educação, seus posicionamentos e ideias, dentro de uma perspectiva
bíblico-cristã reformada.
2. PODE O BATISTA SER
REFORMADO?
João
Calvino foi um dos maiores teólogos da história da igreja e com certeza um dos
grandes nomes da reforma protestante, mas ainda causa desconforto para muitos
cristãos. Merle D’Aubigné afirma que “não há, talvez, nenhuma pessoa da
História mais mal compreendida do que João Calvino”.[8] Alguns, só de ouvirem o
nome Calvino já criam uma resistência, mesmo nunca tendo lido as Institutas ou
qualquer outra obra do reformador. Muitos batistas engrossam o grupo daqueles
que rejeitam o calvinismo por associá-lo com o fatalismo, por não entenderem a
soberania e a justiça de Deus. Eles amam a liberdade humana e temem qualquer
doutrina que tire o controle de suas vidas de suas mãos, e ficam presos a um
pensamento semi-pelagiano herdado dos papistas ou de algum grupo pentecostal
tão difundido nos dias de hoje. Desconsideram a história, a teologia e as
escrituras e, por medo ou ignorância, descartam a teologia reformada sem saber
que ela faz parte de nossa história e de nossa declaração de fé.
Mas pode
realmente o batista ser reformado? Se considerarmos que a teologia reformada é
mais do que um sistema teológico, é uma cosmovisão onde o cristão vai lidar com
as questões da vida com uma perspectiva bíblica reformada, atentando para a
soberania de Deus e a doutrina da graça, então podemos dizer que sim, o batista
pode ser reformado.
O
presbítero da igreja presbiteriana nos EUA, William H. Smith descorda da posição
deste artigo. Ele propõe que chamar um batista de reformado é uma incongruência
devido ao teor do que realmente significa o termo reformado. De acordo com
Smith, o termo reformado ou calvinista, vai muito além dos cinco pontos do
calvinismo, mas abrange uma dimensão eclesiológica e sacramental, e certamente
um batista não poderia ser reformado nesses moldes, pois sua eclesiologia
destoa das igrejas presbiterianas.
Os batistas são congregacionais em sua estrutura
eclesiológica, possuem menos oficiais e não possuem uma visão sacramental do
batismo e da ceia, que são ordenanças e não sacramentos. A ceia é somente um
memorial e juntamente com o batismo são sinais e não selos ou meios de graça, e
são administrados de uma forma diferente, principalmente em relação a rejeição
do batismo infantil tão característico aos presbiterianos.
Batistas creem que a igreja é composta somente por pessoas
regeneradas e não aceitam que a igreja visível seja composta dos cristãos e
seus filhos, mas somente daqueles que creem. Não veem a correspondência entre o
batismo neotestamentário e a circuncisão veterotestamentária, pois entendem os
pactos de uma forma diferente. Batistas não defendem uma continuidade entre o
Antigo e o Novo Testamento, sendo mais dispensacionalistas do que pactuais e
consequentemente não creem na existência da igreja no Antigo Testamento.
Isso tudo já seriam evidências suficientes para concluir que
o batista não pode ser reformado. Calvino jamais confundiria uma igreja batista
reformada com uma igreja inglesa reformada ou holandesa reformada. Se os
batistas fossem reformados eles teriam que sustentar “a ideia da igreja
visível, a natureza dos sacramentos e a prática do batismo infantil,”[9] afirma
Smith.
Entretanto se faz necessário uma avaliação do termo “reformado”.
A questão é se ser reformado implica uma concordância com Calvino em todas as
áreas da teologia sistemática ou apenas uma concordância na soteriologia
mantendo a eclesiologia tradicionalmente batista.
Eclesiologicamente o batista não é e nem pode ser reformado,
no sentido restrito da palavra, mas pode perfeitamente ser reformado na
soteriologia. Nos posicionamos desta forma porque cremos na doutrina da graça e
na soberania de Deus como apresentada nas Escrituras e interpretada por João
Calvino. O ponto de congruência para o batista confessar a teologia reformada é
a soteriologia.
Pode um batista ser reformado? No sentido amplo, sim pode,
no sentido restrito que envolve eclesiologia, não, não pode. Mas a ênfase que
damos ao se intitular reformado é soteriológica, então, sim o batista pode ser
reformado, ou melhor se expressando soteriologicamente reformado. Talvez a
melhor nomenclatura seria que o batista pode ser “dortiano,” uma tentativa de
nos associar aos cânones de Dort.
Dr. Carl Trueman, professor no Westminster Theological
Seminary nos EUA, em seu artigo “What’s in a name?” (O que um nome contém?)[10]
também se posiciona contrariamente dizendo que o termo reformado se expandiu
muito abrangendo hoje batistas e até alguns carismáticos, mas se usarmos o
termo no sentido mais restrito da palavra, reformado são aqueles que detém e
observam a confissão de fé de Westminster, o que deixaria os batistas à
margem.[11]
Se o fator decisivo para se considerar um cristão reformado
for a confissão de Westminster, então os batistas ficariam de fora, pois não
estamos firmados teórica e historicamente sob esta confissão, entretanto,
Jeremy Walker da igreja batista Maidenbower na Inglaterra escrevendo em seu
artigo “Reformed and Baptist: The Third Wave” (Batista e Reformado: A Terceira
Onda)[12] afirma que o batista pode sim ser reformado pela similaridade que há
entre a confissão de Westminster com a confissão batista londrina de 1689 e por
defendermos os cinco pilares da Reforma.
Agora um novo referencial se desponta para autenticar o
batista como genuíno reformado: A confissão batista londrina de 1689 e sua
similaridade com a confissão de Westminster que veremos em um outro artigo.
3. CONCLUSÃO
Pode o
batista ser reformado? Soteriologicamente sim, eclesiologicamente não.
O batista
não é reformado em sua totalidade pois isso envolveria uma teologia pactual e
sacramentalista que difere da nossa declaração londrina de 1689. Por mais
similaridades que hajam, e são muitas, entre a confissão de 1689 e a confissão
reformada de Westminster, alguns pontos principalmente na eclesiologia, desde o
governo da igreja até a administração das ordenanças são incompatíveis. Se o
padrão para ser reformado é ter a confissão de Westminster como guia e resumo das
convicções doutrinárias, então os batistas não podem ser reformados.
Entretanto, entendemos que ser reformado vai muito além da eclesiologia.
Ser reformado é uma cosmovisão, uma forma de encarar a vida dentro de uma
perspectiva bíblica cristã reformada, e dentro desta perspectiva o batista pode
muito bem ser reformado. Porém esse artigo restringiu o termo apenas no âmbito
doutrinário e teológico. Nessa ótica mais particular e restrita, afirmamos que
sim, o batista pode ser reformado porque em primeiro lugar o movimento derivou
da reforma Protestante. Os batistas não são uma extensão da igreja Católica
Romana, nem são um grupo sectário vindo de outras religiões. Os batistas são
fruto da reforma protestante e portanto são reformados.
Em segundo lugar, o movimento batista desde
sua origem defende e crê nos cinco pontos essenciais do Sínodo de Dort, os
cânones que são um dos principais documentos reformados. Os batistas
particulares creem e defendem a doutrina da graça, na soteriologia,
antropologia e hamartiologia, então não há outro modo sincero de se afirmar que
o batista pode ser doutrinariamente calvinista e consequentemente reformado.
Além do mais, os batistas particulares defendem a confissão de fé de Londres de
1689 que por sua natureza é uma confissão reformada e coerente com Dort.
Pode um
batista ser reformado? Sim ele pode ser soteriologicamente reformado e ainda
sim fiel à sua origem, sua confissão e seu pacto denominacional.
Pr. Ricardo Rocha
[1] R. C. Sproul. What is
Reformed Theology? (Grand Rapids, MI: Baker Books, 1997).
[2] Laurence M. Vance. O Outro
lado do Calvinismo. (e-book, pg.34)
[3] Herman Hanko. O que
Significa ser Reformado?. (Fireland, 2012).
[4] VANCE. O Outro lado do
Calvinismo, pg.34.
[5] Hermisten Maia. Nossa
Identidade Reformada em Monergismo.
http://www.monergismo.com/textos/teologia_reformada/identidadereformada.htm.
Acessado em 04.11.2015
[6] J.I. Packer em Teologia
Reformada. http://www.mackenzie.br/teologia_reformada_est.html. Acessado em
04.11.2015
[7] Brian Walsh e J. Richard
Middleton. A Visão Transformadora: Moldando uma Cosmovisão Cristã. (São Paulo,
SP: Cultura Cristã, 2010), 83.
[8] Hermisten Maia. João
Calvino 500 anos. (São Paulo, SP: Cultura Cristã, 2009), 11.
[9] William H. Smith. Can
Baptists Be Reformed? Is This a contradiction in terms? Em The Christian
Curmudgeon
http://thechristiancurmudgeonmo.blogspot.com.br/2012/06/contradiction-in-terms-anthony-bradley.html
Acessado em 11.11.2015
[10] Minha Tradução
[11] Carl Trueman. What’s in a
Name? em Postcard from Palookavillle.
http://www.mortificationofspin.org/mos/postcards-from-palookaville?page=44
Acessado em 11.11.2015
[12] Minha Tradução